A introspecção pode ser um grande trunfo, caso você seja um artista. São nestes momentos, em que se prima pela solidão e pela tristeza, que vem a inspiração para muitos poetas, pintores, músicos, escritores, entre outros. É a melancolia que dá o toque de mestre para o trabalho, porque ele acaba dialogando com a alma das pessoas – todos passamos por momentos assim, de tristeza, durante o qual queremos ficar sozinhos, no silêncio do nosso quarto, procurando a espada do nosso salvador. E citando Erasmo Carlos, porque ele, apesar de sua “fama de mau”, é um letrista, um poeta, sensível, e entende da introspecção. E é por este viés que começo a falar de “O Que Faltou Ser”, oitava música do disco “Manuscrito”, da Sandy.
A letra de “O Que Faltou Ser” foi composta em 2007 – bem distante do início dos trabalhos sobre o primeiro disco solo de Sandy, mas coincidente com o encerramento das atividades da dupla Sandy & Junior. Foi em 17 de abril de 2007 que Sandy e Junior publicaram, no site oficial da dupla, um vídeo anunciando o projeto “Acústico MTV” e o fim da dupla após este. Um choque para muitos, um alívio para outros – 17 anos de Sandy & Junior era, sem dúvida, um marco histórico para a música pop brasileira. A notícia pegou os fãs de surpresa, mas logo os felicitou por conta da extensa turnê de despedida que se seguiria à gravação do álbum ao vivo.
A partir da análise destes fatos, que mostram o quão atribulado foi o ano de 2007 para Sandy, não é de espantar que ela estivesse tão angustiada e melancólica para escrever uma letra assim. Segundo a própria cantora conta no documentário “Tempo”, dirigido por Fernando Grostein Andrade (“Quebrando o Tabu”), a música fala “do que sobra quando a outra pessoa vai embora” – como seria Sandy sem Junior? E Junior sem Sandy? Todo o mundo que Sandy conhecia até então – musicalmente falando – era ao lado de seu irmão, com quem mantivera uma carreira musical por quase dezoito anos. Como seria dali para frente? E, a partir daí, entende-se o verso: “Você levou tudo que eu sabia de mim/ E agora?”. Para Sandy, a dupla durou até onde deveria durar – “enquanto a verdade soube conduzir”. A partir do momento em que eles entenderam que tomavam rumos musicais diferentes e irreconciliáveis – para uma carreira em dupla, vale ressaltar – eles acharam melhor encerrar este ciclo.
Segundo Sandy, a maioria das músicas compostas por ela – portanto, todas as músicas do álbum “Manuscrito” – tem forte tendência a serem compostas em tons menores. Para os entendidos dos trâmites musicais – assunto do qual pouco entendo, mas sobre o qual não sou exatamente leigo – tons menores correspondem a notas mais graves. No andamento da música, estes tons dão um aspecto mais melancólico, mais introspectivo, à canção, e esta linha melódica casa perfeitamente com as letras presentes no disco. “O Que Faltou Ser”, portanto, é feita em tons baixos, que passam ao ouvinte uma sensação de tristeza e melancolia. Como Sandy já deixou claro em diversas ocasiões – dando mais uma prova de sua verdadeira alma de artista – são os momentos de melancolia que mais dão inspiração para a composição.
“O Que Faltou Ser” é uma canção embalada por um arranjo bem retrô, próximo da década de 1970, alcançado pelo uso de uma instrumentação mais anacrônica. A pianista Eloá Gonçalves toca um Mellotron na música – este, um teclado eletromecânico inventado na Inglaterra na década de 1960, e introduzido na música brasileira pela banda de rock progressivo Os Mutantes, no álbum “O A e o Z”, o primeiro sem Rita Lee – e Samuel Fraga toca bateria – cujo andamento difere do preferido atualmente pelos bateristas de plantão, por ser mais lento e mais conjugado à letra da música, a fim de não interferir na compreensão das palavras cantadas por Sandy. A sonoridade retrô do arranjou casou com a letra de “O Que Faltou Ser”, e acabou por deixar a canção mais harmônica e elegante.
Sandy conseguiu transgredir barreiras musicais com “Manuscrito’, e pôde dar seu grito de liberdade para a carreira solo, mas é sabido que ela apenas conseguiu sentir-se independente ao lado de parceiros musicais nos quais tinha plena confiança – Junior e Lucas Lima eram imprescindíveis para o êxito dela. Por isso e não à toa, Sandy decidiu que, depois de quase 20 anos de carreira, ela poderia se dar ao luxo – que nada tem de egoísta, diga-se de passagem – de gravar um disco para ela mesma. E “Manuscrito” transmite exatamente esta sensação – de ser um álbum conciso e maduro, feita por e para a Sandy dessa nova Era de Aquário, que adentrava num universo novo.